A verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente. -
Albert Camus
12/17/2006
ela não fala mais
by Biliana Rakoevic
que queime tudo. diz. será esse o final de todos os escritos que deixou. tão escassos já.
vejo-a ainda. de preto. quase sempre. um cigarro mais para ter entre dedos, que para o fumar de facto.
viciada? - em gestos. em rituais.
as mãos magras de dedos compridos urgiam um objecto para as usar. o cigarro serviu.
agora que partiu lamento até a falta do gesto de a ver pegar nesse cigarro que não sorvia sofregamente. como não deve ter sequer feito ao seio da mãe. eu, que nem fumo...
partiu. foi de caminho viver e contar o que viveu-sentiu.
está, enquanto estiver. e além dos três filhos que deixou vive uma espécie de vida e morte com ou sem companhia. mas segue. sabe, há muito, que não há tempo para parar.
vou tratar de queimar os papéis. talvez me doa. mas para que servem, como ela diria, os amigos de sangue verdadeiro?
cabe-me a mim encerrar este blog de parte da história-vida de Maria.
embrulhada em mais um papel escrito, deixado ao merceeiro, uma chave banal. dentro da casa leio as palavras breves.
- desculpa-me, Menina, mas promessa é dívida. trata agora de cumprir. lê à vontade e destrói antes da chegada dos corvos, por favor. confio em ti.
muita vida!
beijo amigo.
maria.
a arca sei qual é. via-a muitas vezes quando a visitava. sabia dos discos de vinil e de papéis que ela não mostrava. natural. coisas suas. abro-a. não está cheia. algumas pastas com papéis soltos para além de discos e alguns objectos. não fumo mas hoje preciso de um cigarro.
no sofá aonde sempre a via, sento-me para ler. tenho saudades. é normal.
não sou dada a ciúmes patetas, mas o que sabia de Maria até hoje viera de uma amiga comum. nem um sinal directo, uma palavra, uma carta. à preocupação natural juntava-se a mágoa pelo silêncio.
até hoje, dizia. até um homem novo me trazer uma chave vulgar, embrulhada em papel vegetal. tão sem jeito, tão à maneira dela, só com o meu nome escrito até quase rasgar a folha tranparente.
- foi uma senhora que mandou entregar, pediu que lhefizesse o combinado se ela não voltasse e que lá fosse agora para escolher o que tinha de ser.
- mais nada?
- não. decorei bem. foi assim mesmo que ela disse.
- estava triste?
- não a conheço bem. só moro lá na rua, mas a mim sorriu ela e, foi-se embora. deu-me uns trocos... dava sempre... e cigarros também. vivo só da pensão da...
deixei de ouvir. agarrei o embrulho com afecto e fechei a porta para a abrir de novo e meter-me no carro em direcção à rua estreita. tremia. sem entender porquê.
que fez ela ao passado? deitou tudo para o lixo? raio de mulher!
- o passado? "o passado quando não está bem passado leva-se ao forno outra vez", dizia a Manuela.
era assim que diria e parece que a oiço. ela atirou-o fora e passou por uma qualquer porta estreita para outro lado. vá eu lá saber qual...
tenho saudades das conversas com ela até madrugar e ser o sono a empurrar-me porta fora, não a vontade de sair.
isso no tempo em que falava muito e era bom ouvir. depois calou-se. como se tivesse decidido não ter mais nada para dizer.
mentira. tinha pois. tinha era raiva pelo que lhe fizeram mas estava cansada desse falar a que chamava "carpir". não era de ter pena de si própria.
merda, estou para aqui a falar dela no passado e ela está viva ainda. tem de estar!
Rock Kauser
terá ido a Marrocos? ela adorava e dizia que tinha de voltar a ser árabe nem que fosse só mais uma vez. a sua máscara árabe. mulher de máscaras muitas.
my gratefulness to ania-madina and through her, to all the photographers of whom I used photographs in this blog, without them it would be surely an inferior space.
um dia ela não controlou instintos ou palavras. um dia disse tudo o que acumulara anos a fio e fez só o que quis. sentiu-se livre mas durou instantes.
os fariseus de agora, trouxeram água e terra e fizeram da mulher estátua de lama. riram e cuspiram-lhe em roda, até ela não saber mais se era quem eles diziam ou quem tinha sido até áquele dia.
de cansada sentou-se para pensar.
quem eram eles? o que é que lhes devia? se a alguns salvara até a vida porque haveria agora de lhes pedir perdão por ser gente verdadeira com erros verdadeiros?
então ergueu-se, procurou um rio. mergulhou nele corpo e alma, fez-se líquido puro.
Antoine de Villiers
depois seguiu fazendo o seu caminho e, nunca mais olhou para trás.
dada a pensar desde a infância, não deixava de se perguntar o que a atraía no escritor. o físico? não, não só. a mente? sim, definitivamente.
uma mente caudalosa de ideias e cultura. de ideias incutidas cedo, rejeitadas tarde e que deixaram marca. outras que lhe brotavam, como na cabeça de um louco brotam brilhantes conceitos, que gostaríamos tanto de poder chamar nossos. ela pelo menos sim.
os loucos e as crianças eram o seu fascínio.
George Reclos
Maria aprendera a caminhar em cordas tensas desde o tempo do amor, tempo de melros, mas se isto era amor, era tão diferente do que sentira antes, que mal se atrevia ainda a chamar-lhe isso.
- casar, não caso. o meu filho não vai ter por padrasto um homem que eu própria mal conheço. além disso, para quê? nunca foi a minha vocação...
by Majid Mohammad
- ele é estranho parece que baloiça entre a quase rigidez e uma maleabilidade de acrobata. depois há os silêncios que parecem de pedra mas não são. o olhar invade, fotografa, transforma, desnuda.
não sei se é ele que olha ou uma máquina que me regista e me rouba a alma. sou mesmo árabe!
ria de si. mas estava inquieta. muito.
- definitivamente eu quero aquele homem. mas será que ele me quer a mim?
nunca fora segura das suas qualidades. ouvira tantas vezes "ela não é capaz", que acreditara, tanta era a convicção posta nesse dizer.
by Bruno
- tem vezes em que o olho como uma escada agreste a subir com gosto. sempre gostei de percursos difíceis, mas depois parece que fui dar a beco sem saída. a escada não tem fim, só tem muro a fechá-la. saberei eu lidar com isto já?
mas no sexo esquecia.
bebiam e amavam-se entre corpos. e os corpos, se livres, acabam sempre por entender-se bem.
"Louvados sejam os que correm o risco de ser pedra entre as pedras, flor da morte em flores mortas, nu entre os nus – oh louvados sejam."-Paulo Briguet
não entendeu porquê, mas há muito deixara de se questionar sobre o que lhe era estranho. não faria mais nada. tudo o que vivia pareciam cenas de uma peça que lhe tinham dado para interpretar e da qual desconhecia o autor.
by Mark Dornblaser
- aquele homem é fogo e gelo ao mesmo tempo. qual sobreviverá? as hipóteses seriam mínimas para o gelo, é óbvio ou parece, mas é como se ele se auto congelasse, quando só.
tenho de ir trabalhar. este homem está a tomar demasiado do meu tempo útil.
tudo parecia tão simples quando , em viagem, fazíamos versos surrreais a meias.
raios, o telefone. que máquina esta que eu dispensava bem!
- sim?
- olá!
- olá.
- posso ir buscá-la para jantar?
... posso?
- ... pode. até logo.
ela podia bem ter dito : - não.
podia. não fora a voz de fogo e as memórias da pele - pele de bébé! - que ultrapassaram os fios e lhe incendiaram o corpo no instante.
levantara-se cedo porque sim. por hábito. sem gosto. gosto tinha pela noite, não pela manhã pejada dos ruídos de quem se apressa para trabalhar.
jjfv
também não gostava de café. sem açucar parecia veneno, com açucar, uma espécie de xarope antigo. tomava-o só pela cafeína, já de cigarro aceso.
- está um sol de fazer doer os olhos a qualquer toupeira. é assim que me sinto, mas em casa não fico, a primavera é para celebrar.
hoje acordei ridícula. celebrar a primavera cercada de caixotes, de gigantescos caixotes, onde nem parece viver gente. não terão nada mais para me tirar? a minha opinião nunca contou.
Anna Paganacco
- ainda aí estás? não tinhas de sair? vais deixar o homem especado à espera? olha que ele não é nenhum miúdo já, como eram os outros, pode-se fartar...
- vou já. ainda há tempo. também se se fartar que vá. aí está uma coisa boa para me tirar o sono que não tenho!
- julgas que vais ser sempre nova, é?
está morta por acasalar-me de vez. ao tempo que isto dura! não tem mesmo imaginação para mais. discutir para quê? nunca houve diálogo possível...
- quem dera que a ele lhe apeteça ir até ao campo. tenho sede de papoilas e trigais.
Luís Zilhão
- como se a vida fosse isso. devias ter andado na monda para ver se tinhas saudades...
saiu. era pior o discurso patético, repetido anos a fio, que qualquer acimentada arquitectura.
- até logo mãe. não sei a que horas venho mas não se preocupe. eu telefono se não vier jantar.
ia contar-lhe que ele queria casar, a todo o custo, mas para quê? ela iriaaplaudir...