1/31/2006

tão triste te sinto, Maria onde estás?

quero mostrar-te as pedras.

aqui já choveu e brilham as pedras que foste guardando, tal como na terra.
não penses em nada. olha-as e sorri.




sequei-as ao sol e depois deixei-as de novo onde estavam, mas não resisti e segurei uma, quartzo cor de rosa. vibrava, Maria!

fiquei a saber que uma pedra fria nos aquece as mãos. tu tinhas razão.

se foi o escritor ou homem do mar, que te fez partir, esquece-o e volta.

Maria, onde estás?

depois de um espectáculo.

.fine-art.book

o que é uma actriz ao representar?

pessoa de sangue e carne real?


ou, pago o bilhete à porta de entrada

é posse de alguém? coisa que pagou

e vê na arena ou por trás do pano

que desce no palco, e quer para si.


na rua, atroplelam-se se dela gostaram

um toque, um rabisco, um olhar até.

admiração? nalguns há, talvez.

nos outros é gula, coisa de comer.


o que é uma actriz ao representar?

quem dera eu saber!

o que assustou Maria?

ponho-me a questão, quase já conhecendo a resposta. o escritor tinha-a impressionado mais do que desejaria e surgiu acompanhado. para ela, isso era um ponto final.

donald verger


- sente-se melhor? que lhe disse o médico?

- sei lá? falou de amália e ponte salazar, não falava inglês.
só fui obrigada.

- aqui é assim.

- será para todos?

- com o tempo talvez possamos saber. outra ditadura... sabe como é.

calo-me. não tenho muito para dizer. aqui está um outono mais que esplendoroso. as gentes simpáticas, espectáculos do melhor que pelo mundo há.

que raio faz ele colado ao meu lado?

- guarda-me lugar na cantina, logo?

- se faz questão disso?

- faço pois! e não se entusiasme tanto que até lhe faz mal.

outra gargalhada.

saio disparada, entro no autocarro. ontem, quando chegámos ao hotel, ele tinha um telegrama da mulher, ou seja o que for, à espera. nem leu. meteu-o no bolso. a rir-se para mim.
fita! nada mais.

quero a minha vida. que me deixe em paz.
sorte, a colega saiu para pentear a cabeleira postiça. tenho uma infantil mas enorme vontade de atacar.

MARTIN - FOCKUS
mas a quem? porquê?

escondo-me no grupo

- dormiste bem?

- não.

- dormes na viagem...


mattlankes.

- oi! bom dia aí, bicho-fugidio! guarda-me lugar?

coisas de marujo!

achou a carteira.
dormiu noutro sítio, vem acompanhado.
pena que a não leve.

by kevin farrell.

estou com uma enxaqueca de morrer. deve vir cansado. há-de ter menos de que me falar.

by hugo tuffen


mas que som é este, agressivo intenso, que se sobrepõe ao som tão amado do nosso rio azul?

ajuda-me, amor! não te quero perder!

1/30/2006

-posso-me sentar?

- o lugar está vago, não está?

- é por isso que lhe acho piada. responde sempre como se atacasse. vai ser uma viagem divertida...

- se contratasse um palhaço resolvia dois problemas, ria e tirava alguém do desemprego.

Veer.

a gargalhada, não parecesse ele inglês, seria igual à que os árabes dão nas nossas costas, se aceitamos pagar preços de americano. não resisti e ri também. talvez viesse a ser divertida a viagem.

paul o


- a quem está a dizer adeus? ninguém a ouve...

- não me diga? e eu tão convencida que sim.

- vá conte lá ou é segredo seu?

- só tenho segredos dos outros.
deixei lá em baixo a minha cria e faço sempre isto. estamos a sobrevoar o ninho onde ficou.

- a sua casa?

- a dos meus pais.

- então não vive só?

- se tenho um filho, o que é que lhe parece?

voltou a rir.

mas eu pensava demais na minha cria para lhe dar atençã
o
.

paul o

- afinal tem segredos.

ria.

- quê?!

- perguntei se vivia sozinha para saber se era casada ou não.

- parvoíce! dizer uma coisa para perguntar outra.

acasalei, pari e pronto. entendeu?

- entendi.

também tenho três filhos. enviuvei cedo. começo agora ao voltar, a tentar ser um pai. espero ainda ir a tempo.

e foi falando até à descida em paris. escala por uma noite.

já no autocarro para o hotel continuámos juntos. o outros olhavam-nos de lado. como isso era costume!

- perdi os documentos todos!

malas à porta do hotel. reboliço geral.

e eu? porquê o sobressalto?

dou comigo a pensar: se os perdeu não vai. que neura de viagem!


Alan Babbitt

uma pedra no canteiro! guardo-a. desta terra só se aproveitam a arquitectura e as pedras. vai-me dar sorte. sei.

1/29/2006

- o homem que veio do mar

é em si mesmo uma ironia do destino.

o mar um dia levou uma árvore ainda em crecimento e que devolve agora? uma de aspecto envelhecido, com ar de quem viveu toda a história trágico marítima de caminho.


Igor L.

terá sequer raízes?

não sei. mas sabe rir e isso é tão raro. faz-me rir e eu não sou de riso fácil. tem olhos de gato preto.

o escritor, irá connosco na próxima viagem, a última para mim. alegra-me que vá. é inteligente. tem arte no viver.

nas há qualquer coisa. há sempre qualquer coisa...


Lobachev


como há uma aranha por trás da maravilha de uma teia orvalhada.

vou ter atenção.

a primeira alusão de Maria ao escritor não lhe dava relevo. nesta, parece que ele se lhe impôs de forma mais intensa da que ela descreve.

será que foi assim?


embrulhada num véu

Fred Ellis

embrulhada num véu
de chuva forte e vento, caso com o temporal.

não sei de mais amores que ser do mar
e não amo mais nada.

hoje não me ouvirás, a menos que já saibas
ouvir a voz das árvores.
elas sim, têm histórias infinitas
que lhes vêm do âmago da terra.

eu não sei nada.não quero saber nada.
chove, chove! há lá benção maior a assinalar?

uma única foto para uma vida inteira.


foi a mim que a deixaste e só por isso a uso. que diz ela de ti?

a preto e branco,como se a tua vida assim tivesse sido. mas eu sei que não foi. quem viu do mundo as cores nunca as esquece. e tu, Maria, tinhas o condão de olhar e ver.


é a hora.

agora terás de falar tu. não sei de amores teus para além do primeiro e sei que amaste. como poderias tu viver sem isso?
eras uma mulher jovem e viva, não negarias a própria natureza.
conta. diz.

a fortuna a herdar:


um maço de cigarros já aberto, de uma marca que quase ninguém fuma.



um ninho que encontraste abandonado e serviu de presépio num natal .


e a tua fortuna em livros muito usados e jóias de contas e sementes.

fraca herança para a hora dos corvos como tu lhe chamavas. quando encontrarem, se encontrarem, a porta verde da rua pombalina, atrás da qual, um dia, te escondeste.


porquê? conseguirei saber?

venham comigo. a arca espera aberta com os papéis que me faltam ler antes do acto a que estou obrigada, de os queimar.


é o fim do intervalo.

1/28/2006

a primeira rosa

Rabat Abu Bakr Kilany

foi ela que me deu sangue para as veias
me aqueceu os invernos rumorosos

veio-me de ti na hora das candeias
quando os medos se tornam mais penosos.

foste tu ou a rosa? e isso importa?
foi a vida que entrou. abri-lhe a porta.

saí com ela para nunca mais voltar.
mas murchada a rosa veio a morte

tirar-me a árvore de que era parte já
perdida a bússola aonde fica o norte?

quero lá saber de pontos cardeais!
sou uma pedra. apaguem-me os sinais.

Lara Ellis

intervalo.

poly clay

ficaste a meio caminho

half- a- world-away-by-epiphany

quem curtou o percurso?

o amor que morreu?

é, há vento lá fora, mas nos tempos felizes não fecharias portas. dançarias ao som da música do vento, ao longo de uma qualquer praia de inverno

marlene neumann.

nesses tempos, Maria...

o quê ou quem roubou esse teu equilibrio com a natureza? que aconteceu, que foi?

1/27/2006

Shadows and Shapes

- não penses. não penses. fecha bem as portas. está vento não ouves? vá, tenta dormir...

- sim, oiço. assobia pela chaminé...

a quem respondo eu? que loucura é esta? sei que estou sozinha.

então quem falou?


hoje não saí cedo.


não era teu costume senão para trabalhar.

a tua hora começava ao pôr do sol e entravas noite dentro como em casa de amigos. à noite é que escrevias, lias, conversavas sem noção de tempo.


os teus livros, foram amarelando. mas vê-se ainda bem o que mais leste e releste. abrem naturalmente. como se a tua mão os abrisse para mim.


MB

a arca continua fechada. quero ainda sentir-te mais que ler-te. estás no que tocaste.

na energia de tudo o que existe acreditavas. mais que isso, sentias.

- até as pedras vibram, pega uma, fecha-a na mão, vais sentir, vais sentir.

já tentei. têm pó as pedras que deixaste. deve ser por isso que não sinto.




- a chuva é o melhor. depois secam ao sol da manhã. bastam uma ou duas horas. ficam tão brilhantes como na terra são e sentem-se. cada uma tem um pulsar diferente...

eu acredito em ti. revejo-te parando na porta de uma casa a cair, para colher uma flor. parecia que pedias licença à planta, antes de a separar de um pequeno botão.


marlene neumann



Maria, não entendo, amando e sentindo tudo isto, não eras feliz?

.christoph gamper.

- a felicidade é um pássaro breve que mal se vê, nem se deixa prender.

1/26/2006

vim de automóvel. não há riachos perto.

Cumberland Gap

e o pouco verde deste inverno é aqui que está.

carreiros. terra pisada por meia duzia de pessoas em rotina diária ou a passeio? não sei. sento-me numa pedra.

sei que Maria teria atravessado a ponte ou subido até um ponto alto, onde visse melhor o rio corrente.

fotosearch

que é agora? que oiço?

nunca me me aconteceu. só pode ser cansaço. mas tão nítido. um som lento, grave... vou escrever. seja lá o que for, quero recordar.


Só o passado verdadeiramente permanece.

O presente... O presente não existe:

Le moment où je parle est déjà loin de moi.

O futuro diz o povo que a Deus pertence.

A Deus... Ora, adeus!


conheço isto, é de manuel bandeira. mas porque se me impôs neste instante à memória? nem tinha consciência de o saber de cór.

e saberia?

Maria, pára! ainda acabo por acreditar.

acordo cansada. saio cedo para a rua.

tive toda a noite a sensação da tua companhia, vinhas como um sussuro ou como a voz de um búzio, contavas-me histórias. trocavas reticências por pontos finais.



- eu nunca acreditei senão em que tudo o que acontece está na natureza. também elegi Cristo, como o deus que eu gostaria de ter. não na pomba que, em dia de nuvens, cruzou com um raio de sol.
há o que conhecemos e o que ainda não. se o inexplicável é deus, então há.

raios! não me leste? e diz já agora, para que é que o fizeste? era só queimar... não dava trabalho.

não há nada escrito que os outros não vivam. a vida é igual para todos. só o nosso olhá-la e as escolhas feitas a tornam ou não, especial.
excepção para a miséria seja ela qual for. essa não é escolha, é desleixo apenas dos que em volta assistem.

Jean-François Dupuis

um café com leite (era o que bebias com pão, pela manhã). sabe bem agora. cansei de fantasmas. hoje irei para o campo, ver o outro lado de ti que não sei.

1/25/2006

que luzes são essas?

Maria - pintora Fernanda Dias

olho ainda o mar. as perguntas surgem em sequência rápida. porque deram uma pergunta como título, ao teu retrato em adolescente?

que luzes são essas? retrato pergunta. como hei-de eu saber?! não deixaste escrito. do que li de ti, o mais natural foi nem perguntares.

seriam os olhos? a aura não era. nunca te referiste a crenças iguais.

e esse teu amor amputado, brusco. sem tempo que fosse uma anestesia para te preparar?

está a ficar frio. tanto, de repente!

eu volto amanhã.

que sei eu de Maria depois do que já li?

percorro-lhe os caminhos para a encontrar melhor. primeiro, é urgente abandonar a calçada da cidade aonde definhou. encontrar um carreiro que lhe lembre campo, ainda que curto e feito à medida do homem que o quis.

é um escasso mas reconfortante contacto com a terra.

como era ela? - alta, magra. vestia como quem pouco se importa, como quem só cumpre a regra de não andar nu pelas ruas, ou cobre o frio com o primeiro trapo que aparece.


of cloth Alan Babbitt


depois há que chegar ao campo ou ao mar. desertos ou o mais perto disso que a civilização permitir.


at zenandphotography

não querendo conduzir, tentando ainda repeti-la, fico-me pela praia. é inverno. aí Maria estaria no seu habitat. poderia fazer o que na solidão, fazia sem vergonha ou medo: assobiar e esperar que do seu poiso, um melro respondesse.

Gerd Rossen

acontecia.

até aqui foi fácil, agradável, quase infantil até. e depois disto, serei ainda capaz de a entender? não retomarei os escritos da arca sem tentar.

tivesse Maria o meu olhar exausto de

fotosearch

tanto ver e ler e talvez tivesse olhado o homem do mar de um outro jeito.

olhou como sabia.

o meu cansaço faz-me fechar a arca e dar-me uma pausa para outros pensares.

colou-se a mim a história desta mulher que, um dia, houve.

1/24/2006

de madrugada, antes de dormir

deu consigo a pensar:

o homem que veio do mar, é gente de muitos tempos, muitas máscaras.

by B Dunki

1/23/2006

Maria tinha memórias genéticas

de outras areias. quentes secas mas, por falta de férias, no inverno procurava o mar.


Eric Boutilier-Brown

aí recebia a energia das ondas e a paz de que necessitava, para alinhar as ideias que iam ganhando corpo, desde que voltara da viagem.

água. da água nasceu a vida, como não procurá-la?

pouca gente passava nessa época. parecia um deseerto. fazia-a sentir bem a solidão. dos poucos passantes notou um, por mero acaso de erguer o olhar.

Paul Osmond

estranha expressão. é seguramente mais jovem do que a barba branca deixa aparentar. tem olhos de vento. faz-me, sem qualquer razão, pensar no velho e o mar.

passeava. direito, alto, quase inglês.

tal um aristocrata que veio ver a plebe.

riu sozinha e esqueceu. não tinha ido para ver. fora para respirar. recomeçaria o trabalho dois dias depois. era o descanso a que o teatro de qualidade dava direito, ao tempo.

ainda há uma viagem por fazer. a essa não me posso esquivar.

doem-me na carne os olhos do meu filho. tão tristes! tão tristes...

único comentário e fim da pausa


manxscenes

recuso morrer no mar enquanto puder remar.

1/22/2006

hoje. ainda.

Doug Burgess

I. O INFANTE

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te portuguez..
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!


Fernando Pessoa

breve meditação antes das eleições

at allposters


(...) Hoje
sei apenas gostar
duma nesga de terra
debruada de mar.



Miguel Torga

já o filho dorme.

bill brandt


só vivo no palco.

o resto é vazio.

o quarto vazio. a cama vazia. o corpo vazio.

já não sei de mim.

aquele menino tem os olhos tristes como eu sempre tive. sei bem como é. e sei que os não tinha quando eu parti.

tem medo. tem medos. os meus e uns novos, que já lhe inventaram no espaço de tempo em que fui e vim.

eu nem quero o palco. como lá subi?

a dizer poesia. aí sim, com gosto. tudo o resto foi tão rápido e forte que nem percebi.

a peça que fiz com raiva de ti. - mentira, com raiva de tudo em redor. dos dominadores dos prepotentes dos monstros que regem o mundo.

tenho de descer. sair de mansinho. voltar a ser gente de sentir real. como o vou fazer?

por onde começo?

o meu corpo freme. o meu corpo teme. o meu corpo dói.

primeiro sacio-o. depois se verá.



e por fim, dormiu. um sono sem sonhos. decidida já.

Isto Não É Um Diário.

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